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12 de outubro de 2009

Questão de valor: o susto sem custo

Eu sabia que a postura irrevogável de não ceder ao imperativo tecnológico-consumista ainda salvaria minha vida. Essa costuma ser minha piada de ‘cunho educativo’ favorita para justificar o fato de eu esgotar a vida útil de meus parcos apetrechos tecnológicos. Geralmente, lanço mão desta em resposta aos inúmeros “pô, Carol, celular sem bluetooth já não pertence mais a essa era!” ou “seu aparelho vai ser confiscado como patrimônio histórico dia desses” que sempre ouço ao atender o celular em público. Ué, que mal tem manter um aparelho que ainda se presta – muito bem, obrigada – a sua vital finalidade: fazer e receber ligações?

Com a graça do bom Criador, sobrevivi para tirar a ‘prova dos nove’. Na última quinta-feira, sofri a tentativa de assalto mais frustrada de que já tive notícia. Voltando da aula, depois de atravessar a cidade, caminhava pela rua de casa rezando para jantar>ver os emails>dormir feito um anjo>e não perder a hora. Na rua deserta e escura, sou abordada por dois rapazes em uma moto. A balão aqui, ouvindo Metallica no Mp3, pensou que eram conhecidos ou que queriam alguma informação (sim, alguém poderia estar perdido nos confins do Pq do Lago às 0:45hs, porque não?).

A moto pára, eu tiro o fone do ouvido direito, faço cara de 'doida-simpática-em-que-posso-ser-útil?' (com uma sutil expressão interrogativa de 'eu-te-conheço-de-algum-lugar?'). De alguma forma, isso amenizou a pose de 'somos dois homens grandes e armados e você, além de mulher, está só e não poderá reagir'... Foi só 1/16 de segundo, mas percebo agora que eles acharam a situação um tanto curiosa e ‘pegaram leve’ quando deram voz de assalto. A expressão do cara que desceu da moto - sugestivamente com uma das mãos debaixo do casaco - era de "por gentileza, acaso você teria um celular ou algo de valor do qual gostaria de se desfazer esta noite?".

Bom, deve ter sido só impressão minha. Quando ele disse "vai mina, passa o celular", juro que quase contive o riso - e o desespero. Pensei: "F#$%! Ele vai ver o meu acessório vintage que quase lembra um aparelho celular e vai me bater, só de raiva". Já logo emendei, enquanto procurava o bichinho na bolsa: "Olha, garanto que não vai ser um bom negócio"... Ele achou que eu estava fazendo alguma piada - ou estava bêbada. Só pode. Pegou o meu pobre guerreiro que não toca, nunca tem créditos e me faz passar raiva as vezes com uma expressão que beirava a compaixão. E, pasmem, DEVOLVEU! Para não passar a noite em branco, fitou quase sem esperanças o meu fone-de-ouvido-cacareco e disse: "E esse fone ai, tá ligado onde?". Quase respondi: nem te conto! Mas me limitei a mostrar o 'refúgio de todas as fossas', meu pequeno e feio Mp3 player, praticamente o Matusalém da Tecnologia. Também não interessou.

Acho que, se ele tivesse feito alguma aquisição ilícita naquela noite, eu seria objeto de sua caridade. Ele encerrou a curta demonstração de quinquilharias com um 'beleza, mina!'. Subiu na moto e saiu fora. Só me restou cessar a tremedeira nas pernas, dar alguns passos, chegar em casa, agradecer a Deus e achar alguma graça nisso tudo. O caso me fez lembrar da célebre frase de Chaplin: não tenho tudo o que amo, mas amo tudo o que tenho. Eu realmente ficaria p* da vida se o cara cismasse em levar - ou destruir - uns dos aparelhos que não valiam nada (para eles), sobretudo porque tinha uma semana de trabalho no pen driver...

O pior de tudo veio com as reflexões posteriores que me levaram ao lugar comum de ‘melhor ser assaltada por profissionais, que logo percebem a causa perdida e não pioram muito a situação’. Ruim mesmo seria, me disseram, se fossem inexperientes e me agredissem só por diversão. Logo lançarei o promissor manual de ‘Como ser assaltada, fazer cara de paisagem e fingir que as coisas no mundo não são tão ruins como parecem’. Melhor não reclamar. Como normalmente acontece, poderia ter sido trágico.

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Pega eu - Bezerra da Silva

"O ladrão ficou maluco de vê tanta miséria em cima de um cristão que saiu gritando pela rua pega eu que eu sou ladrão!'"