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30 de maio de 2011

Sobre arte, honestidade e sacrifício

Sinto muito cumpadi,
mas é burrice pensar
que esses caras
é que são os donos da biografia
já que a grande maioria
daria um livro por dia
Sobre arte, honestidade e sacrifício
[O Rappa]

A noite estava quente e voltávamos para a casa a pé. A caminhada noturna é um excelente antídoto para o tédio e oportunidade ímpar para falar de amor e fazer planos. Aquele céu escuro e limpo estava particularmente inspirador. Já faltava pouco para vencermos a distância até o aconchego do lar, a comida fresca e a cama a nossa espera.

Havia um carroceiro a poucos metros. Três garotos, que vinham em nossa direção, não perderam a preciosa oportunidade de zombar o velho. Estávamos próximos o suficiente para ouvir alguns gracejos, pouco ofensivos em verdade, mas que soavam de extremo mau gosto na composição da cena. Quando passamos por ele, notei que a carroça estava cheia. Os calejados pés descalços protestavam contra o asfalto áspero.

E o homem seguia, com o passo lento e sôfrego. Encaramo-nos deliberadamente. Ele sorriu. Um cumprimento tímido deu início a uma conversa fraca. Ele nos informou de sua fome. Não tínhamos quantia em mãos ou algo para consumo imediato. Fitei os olhos do velho e sua sinceridade me abateu. Diminuímos a velocidade e acompanhamos o desabafo. Um estranho nó foi de apossando de minhas cordas vocais.

“Carlos é como me chamo. Vivo na rua, durmo debaixo da ponte”. O dia havia sido de muitas colheitas, mas não houve tempo para vender as quinquilharias. “Tenho fome”. Sua fraqueza era evidente. Algo precisava ser feito. Prometi que pararíamos em bar a frente, que ainda servia comida naquele horário. Mas não era só carência de sustento que estava em jogo. Sempre há algo de desumano que permeia as discrepâncias sociais. Aquilo era fome de civilidade.

Acompanhamos seus passos curtos. Passados alguns minutos, já com a marmita quente nas mãos firmes e sujas, ele agradeceu. Disse que Deus sempre encontra uma maneira indireta de lhe render graças. Corei de vergonha ao lembrar dos problemas que inspiram minha descrença na vida, sempre relacionados ao meu umbigo ou um pouco abaixo dele. Vaidade inútil e estéril.

Naquela noite, tivemos a preciosa oportunidade de conhecer um homem ilustre. Um homem que vive no limite. Um catador de lixo que coleciona sonhos e inspira pessoas. Que divide a comida que recebe e não faz isso por caridade religiosa. Faz porque algo precisa ser feito. Porque seu coração é grande. Com certeza, nele cabe o que não cabe na despensa.